Cavalaria Medieval
O objetivo desse texto é apresentar de forma resumida as origens da Cavalaria Medieval, suas transformações, elementos principais e o que significava ser um cavaleiro nesse período. Antes disso, porém, é importante dizer que os termos “cavaleiro”, “cavalaria” e “cavaleiresco” serão usados aqui quando falarmos das pessoas que além de usar o cavalo como meio de transporte também pertenciam a cavalaria, isto é, um grupo aristocrático da Idade Média e que possuía, entre outras coisas, certos valores, práticas e prestígio social. Outro termo que também será utilizado para se referir a essa organização é Cavalaria Clássica.
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Esses guerreiros eram exclusivamente da aristocracia medieval, isto é, todos eles faziam parte de uma elite econômica e social, utilizavam o cavalo nos seus combates, passavam por uma cerimônia conhecida como adubamento e tiveram seu auge na França do século XII. Nesse contexto, predominantemente viviam em cortes de governantes, com bastante autonomia em relação ao poder central, e consumiam histórias heroicas de personagens como, por exemplo, Rolando e Lancelote. Nessas histórias fictícias dois elementos muito valorizados eram os códigos de competição entre cavaleiros e as ações conhecidas como “boas maneiras” (determinadas atitudes que os cavaleiros deveriam manter com frequência e que os diferenciavam do restante da sociedade).
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Um dos objetivos centrais desses homens era conseguir ser bem visto e admirado pelos outros cavaleiros e pelas mulheres, algo que podiam conseguir através da realização de proezas e determinados gestos que simbolizavam seu status diferenciado, e demonstravam sua valentia e fidelidade. Porém, uma das marcas desses cavaleiros medievais era também o desprezo pelos grupos mais pobres, que sofriam com seu orgulho e violência, por serem considerados pessoas inferiores.
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A origem da cavalaria medieval vem de guerreiros bárbaros do século I d.e.c que viviam na região a qual os romanos chamavam como Germânia. O principal povo que originou a cavalaria clássica foram os Francos, surgidos no século III d.e.c., pela união de vários povos germânicos que se estabeleceram na região da Gália, hoje parte da atual França. A elite que pertencia a cavalaria medieval teve suas origens na fusão entre esses povos germânicos e famílias romanas. Isso porque após o fim do Império Romano Ocidental, em 476, houve uma transformação da Europa em um ambiente essencialmente rural e senhorial.
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Assim, ao longo dos séculos, se consolidou uma aristocracia de donos de terras que dominaram de forma cada vez mais eficiente as pessoas que dependiam deles para viver. Com isso se desenvolveu a vassalagem, um elemento importante da cavalaria, e que era uma rede de dependências e obrigações entre aqueles que possuíam terras (Igreja, condes e senhores de terra menores) e o rei, ou entre senhores de terras. Aquele que se oferecia como vassalo de alguém se comprometia em servir seu senhor e fornecer um certo número de homens para a guerra. Em troca, recebia proteção e, conforme a quantidade de pessoas e riquezas que conseguia mobilizar, também era recompensado com as chamadas “Honras”. Estas últimas eram funções públicas que proporcionavam ao seu recebedor benefícios, os quais aumentavam sua riqueza e poder senhorial. Com o passar dos séculos, e principalmente no período carolíngio (800-843), houveram uma série de progressos técnicos nos armamentos e armaduras. A lança se tornou a principal arma carregada pelos cavaleiros e infantes, empunhada acima ou abaixo da cabeça, e as vezes atirada como um dardo. Para se proteger houve um reforço nos elmos e armaduras, feitos de escamas de ferro sobre couro que cobriam braços e pernas. Diante disso, morrer em combate se tornou bem mais difícil, a não ser em casos onde se era pego de surpresa, em acidentes, ou através, por exemplo, de atitudes impacientes e mal planejadas. As espadas se tornaram a arma exclusiva dos cavaleiros, ainda que nem todos tivessem uma. Elas tinham um caráter simbólico muito forte, pois eram dadas aos filhos de reis como forma de simbolizar sua entrada na vida adulta e a capacidade de reivindicar o trono e sua herança, na chamada Cerimônia de Adubamento.
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Essa cerimônia se desenvolveu a partir de 1050 e na maioria das vezes era conduzida por um conde, ou ainda por um grande número de cavaleiros, necessários para testemunhar esse rito de passagem, uma vez que ele marcava a integração de um jovem à aristocracia senhorial e virou um símbolo de status que honrava aquele que a recebia, pois era a marca essencial que todo cavaleiro deveria possuir para ser reconhecido como tal. Ela sinalizava a entrada dos herdeiros da elite na vida adulta e na sociedade cavaleiresca, e estabelecia o direito de reivindicarem sua herança. Haviam várias formas diferentes de se realizar o adubamento, as quais variavam de um lugar para outro e conforme a época. Uma delas era feita através de um tapa dado com a mão espalmada na base do pescoço do futuro cavaleiro, conhecida como acolada (colée, em francês). Outro tipo de acolada, muito vista filmes e séries na cultura popular, era aquela onde se tocava a base do pescoço do jovem com a prancha da espada (accolade, em francês).
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Ao longo do governo carolíngio houve um processo de aumento no poder político de alguns cavaleiros, pois eles, durante séculos, acumularam terras e também direitos de exercer justiça localmente e coletar impostos em nome do rei. Dessa forma, após a diminuição da autoridade central, com o fim da dinastia carolíngia, esse grupo da elite medieval passou a praticar suas funções de maneira independente. Através disso, se fortaleceram os territórios autônomos governados por cavaleiros que eram ligados a realeza e que possuíam bastante influência política na sociedade: os condes, duques e marqueses. Para esses líderes, o objetivo principal era defender suas terras, a paz e a justiça interna. E, nesse mesmo contexto, a utilização da lança pelos guerreiros, tanto cavaleiros quanto infantes, também se alterou. Ela se transformou em um instrumento usado para golpear o adversário, lhe perfurar de perto, por baixo. Com isso, se tornou mais pesada, recebeu estandartes, e cada vez mais passou a ser utilizada com o braço abaixado e sua haste debaixo da axila, como nas justas.
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Outro fenômeno desse período foram as Cruzadas (séculos XI até XIII), movimentos militares que eram encarados como uma forma de penitência, com a diferença de que o Cavaleiro não precisava abrir mão de suas armas e estatuto para fazer parte deles, ao contrário da vida religiosa, que era outra forma das pessoas pagarem os pecados que haviam cometido. Os guerreiros que lutavam nas cruzadas faziam isso porque, entre outras coisas, havia a promessa de salvação eterna para aqueles que fossem mortos em combate. Assim, por causa disso, muitas batalhas foram sangrentas e deixaram milhares de mortos.
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Mais adiante, no século XII, aconteceu o auge da cavalaria, com suas cortes, torneios, festas e várias publicações da literatura francesa que falavam sobre homens e mulheres que viviam em cortes cavalheirescas. Assim, nessa época surgiram os torneios, provavelmente na região norte da França, inicialmente em lugares pré-definidos, como florestas limitadas por castelos. Neles dois grupos de cavaleiros se enfrentavam em um campo aberto, onde cada indivíduo cuidava dos seus próprios interesses, e, sempre que possível, adotavam a lógica de “vários contra um”. Não havia um juiz que intervisse durante os embates, e as regras variavam conforme o local onde ocorria a competição. Ao final se discutia o pagamento de resgates, cobranças e trapaças ou golpes sujos ocorridos ao longo do dia. Apenas mais tarde é que surgiram os espetáculos organizados em campos fechados onde a principal competição eram as justas.
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Essas disputas eram executadas com cuidados, uma vez que os combatentes utilizavam proteções bastante resistentes e lanças com as pontas amenizadas ou inexistentes, mas mesmo assim mortes ocorriam com frequência, por acidentes ou motivos ocultos, como vinganças. Elas se espalharam pela França e se tornaram uma competição com frequência anual, como as feiras medievais, além de possuírem equipes e locais determinados. A Igreja, entretanto, criticava essas atividades e recomendava que seus frequentadores se dedicassem as Cruzadas, como uma forma de pagarem seus pecados, dentro da ideia de guerrear apenas por uma causa justa.
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Somado a isso, também no século XII surgiram várias obras ficcionais cujo tema era a cavalaria clássica. Elas serviram para apontar certas formas de comportamentos que os guerreiros aristocráticos deveriam praticar. As mais famosas são as histórias do Rei Artur e seus cavaleiros, e as canções de gesta. Uma característica central desse gênero era o Amor Cortês, marcado por uma elevação do amor pelas damas, devoção, distância, domínio de si e que colocava em segundo plano a satisfação dos desejos. Mas vale dizer que ele não era um retrato fiel das relações amorosas que ocorriam na época onde estava situado, mas sim reflexo de angústias presentes na aristocracia, que não podia se relacionar com quem bem entendesse, já que os casamentos, na maioria das vezes, eram feitos a fim de construir alianças, e não baseados no amor entre as pessoas. Somado a isso, outro elemento presente em vários romances de cavalaria é a busca pelo Graal, palavra que originalmente significava apenas prato ou tigela, mas que com o tempo se tornou o Santo Graal, cálice sagrado que teria recolhido o sangue de Jesus Cristo na cruz.
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Por fim, já no início da Idade Moderna, ocorreu o declínio dos cavaleiros que lentamente começaram a perder sua autonomia, pois vários governos absolutistas europeus se esforçaram para os tornarem submissos ao rei e com pouca liberdade para guerrear da forma que bem entendessem. Assim, os cavaleiros, que antes eram poderosos líderes militares e dominavam vários territórios, aos poucos tiveram o seu prestígio e influência diminuídos. Isso foi acelerado pelo crescimento progressivo do uso de armas à base de pólvora no campo de batalha, o que contribuiu para diminuir a necessidade de guerreiros montados a cavalo.
REFERÊNCIAS
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BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria: Da Germânia antiga à França do século XII. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
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BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
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FAVIER, Jean. “A sociedade rural”. In: Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. p. 63-90.
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FLORI, Jean. A Cavalaria: A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005.
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GEARY, Patrick. O Mito das Nações. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005.
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SILVA, Marcelo Cândido da. História Medieval. São Paulo: Contexto, 2019.
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SALLES, Bruno Tadeu. O Senhorio nos séculos XI e XII: Perspectivas historiográficas. In: ALVES, Aléssio A.; RIBEIRO, Felipe A. Perspectivas de estudo em história medieval no Brasil [recurso eletrônico]: anais do workshop realizado nos Dias 29 e 30 de setembro de 2011, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2012. Disponível em: http://www.leme-medieval.com.br/publicacao/anais-do-workshop-perspectivas-de-estudo-em-historia-medieval-no-brasil, acesso em 21/07/19 às 20h30min.
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Sobre o autor do verbete: Ramiro Paim Trindade foi mestrando em História pela UFSM e fez parte do Grupo de História Medieval e Renascentista-Virtù | Info.: 2019.
E-mail: ramiropaim@hotmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1986731414004428