O Diabo
O Diabo se torna ao longo dos séculos, e principalmente após o ano 1000, o instrumento para corrigir os maus hábitos dos cristãos. Nos próximos séculos é sobre ele que recaíram as alegações que essa figura diabólica tentava e seduzia os homens e as mulheres que buscavam pela salvação em Deus. E, também, ao longo da Idade Média, o Diabo era apontado como Satã, isto é, como o “o adversário” de Deus. Assim, ao mesmo tempo em que a Igreja se organizou e se expandiu, durante o medievo, pela Europa Ocidental, a representação do Diabo ganhou forma. Segundo o historiador estadunidense Jeffrey Russel, a figura diabólica do imaginário cristão sofreu a influência de elementos folclóricos de culturas mediterrâneas antigas e de povos celtas, teutônicos e eslavos.
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Ao se expandir pela Europa, o Cristianismo se apropriou de práticas e tradições de povos pagãos para construir uma figura responsável pelo que de mal acontecia aos homens e mulheres. Por exemplo, algumas características do Deus da Fertilidade dos celtas, Cernuno, foram usadas para compor a figura demoníaca cristã. Outro ponto importante sobre a construção do Diabo é a quantidade de nomes usadas para descrevê-lo como: Satanás, Lúcifer, Asmodeus, Belial e outros nomes menos conhecidos (MUCHEMBLED, 2002). Ele também recebe inúmeras aparências diferentes, as vezes mais humanas e outras mais animalescas, como a serpente que tenta Adão e Eva no Jardim do Éden. Mas o demônio ainda podia ser reconhecido comumente na figura da cabra, uma de suas formas mais comuns.
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Ainda sobre os vários nomes atribuídos aos demônios, o historiador Brian Levack afirma que os cristãos que viveram nos últimos séculos da Idade Média e no início da Idade Moderna acreditavam que havia um grande número de demônios inferiores que ajudavam seu líder em sua empreitada pelo mundo dos homens, auxiliando na destruição e levando os indivíduos ao caminho do pecado e da danação.
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Ao longo dos séculos o Diabo também foi descrito e representado de diferentes formas, com alguns aspectos humanos e alguns aspectos animalescos, como um grande falo, casco de bode, um par de chifres, uma longa cauda, um par de asas semelhantes as asas de um morcego, entre outras características. Para exemplificar, do deus Pan foi apropriado os chifres e o pelo de cabra que cobre o seu corpo, além de um grande pênis e nariz. Assim, a sua representação através dos séculos foi dinâmica e se relacionou com as práticas e representações de grupos de acordo com um determinado local e período de tempo. O historiador Jeffrey Russel afirma que, antes de caírem sobre a Terra como demônios, eles tinham corpos celestiais, mas com a queda foram reduzidos a corpos feios e deformados feitos das piores coisas e do mais escuro ar. E, por se acreditar que os diabos são anjos caídos, a hierarquia celestial é imitada nas profundezas do mundo, logo, alguns demônios de ordens superiores hierarquicamente possuem um nome, uma personalidade e a esses era atribuídos alguns males e pecados específicos.
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Segundo o historiador francês Robert Munchembled, muitos tentaram estimar a quantidade de demônios que viviam no Inferno. Segundo os cálculos do médico holandês e demonologista Jean Wier no século XVI, Lúcifer era o imperador do Inferno conduzindo de forma autoritária grandes hordas e legiões de seres diabólicos. Além disso, durante o medievo o tamanho e a importância do Diabo é reforçada em textos, e imageticamente ele surge a partir do século IX. Logo, o mal era um instrumento didático que servia para propagar a fé entre os laicos, criando um antagonismo, e reforçando o lado bom e justo de Deus.
A partir do século XIV, o Diabo não era somente uma criatura humanoide que espalhava o Mal pelo mundo, seu poder maléfico e negativo passou a ser percebido com maior intensidade. Pois essa ameaça diabólica vinha de um adversário sedutor e astucioso, além de um ardiloso ilusionista, e visualmente temível. Sobre o Diabo recaí a fama de um ser enganador, representado pela arte ocidental como uma figura horrível e mesclado com características que começaram a ser delineadas a partir do século XI até o século XV.
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Ele se tornou junto com suas legiões o que tentava e induzia os homens e as mulheres ao pecado, e Deus e os anjos eram os responsáveis por proteger e salvar esses cristãos, para que no dia do Julgamento Final não fossem condenados ao Inferno. Pois, segundo o historiador francês Jérôme Baschet toda a História do mundo é marcada pela intervenção do demônio e as suas legiões, desde a queda até os primeiros sinais do Apocalipse. Além disso, durante a Idade Média, conforme apontam as fontes históricas, o Diabo buscou se igualar a Deus, em vez de prestar obediência e servir, e a partir do século XIV ele ampliou seu poder e influência, e se tornou o Príncipe do Mundo. Ao mesmo tempo em que a Igreja e o Clero se esforçavam para salvar e proteger seus fiéis, santas e santos, a instituição eclesial e as autoridades laicas buscaram afirmar e ampliar seu poder combatendo o Mal e as suas legiões.
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Assim, entre os anos de 1375 e de 1435, ocorreu uma mudança no continente europeu de duas ordens. Primeiro houve um aumento constante no número de julgamentos por bruxaria e, segundo, ocorreu uma intensificação na preocupação com o satanismo. E, a partir do século XI, o Diabo deixou as sombras, para se tornar uma criatura humanoide, que entre o século XVI e o século XVII realizou pactos com bruxas, tanto para a prática de magia maléfica ou para adoração dele. O Diabo iniciou sua trajetória de perversidade ao se rebelar contra Deus e ser lançado a Terra, assim como a bruxa representava uma forma de rebeldia. Desse modo, entre a Idade Média e o Renascimento, o Diabo abandonou as sombras e o submundo, se manifestando no cotidiano de homens e mulheres.
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As figuras diabólicas assumiam diferentes formas para seduzir e enganar os cristãos, e por isso, eles eram chamados por diferentes nomes. O diabo também passou a ser descrito em textos eclesiásticos e representado iconograficamente em pinturas. E, ao mesmo tempo em que a Igreja se organizava no medievo, a figura do demônio ganhou forma, conquistou poder e espaço. E entre o século XV e durante o Renascimento ele se tornou o Príncipe deste mundo, onde além de suas vastas legiões ele conquistou a simpatia de alguns homens e mulheres, que faziam pactos e passavam a adorar o Diabo e não Deus. Assim, a luta não era somente contra o Inimigo de Deus, mas também contra as bruxas, que foram julgadas pela Inquisição e muitas delas queimadas em fogueiras.
Referências:
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BASCHET, Jérôme. A civilização feudal – Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
CLARCK, Stuart. Pensando com demônios – A idéia de bruxaria no Princípio da Idade Moderna. Tradução Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente – Uma cidade sitiada. Tradução Maria Lucia Machado. Brasil: Companhia de Bolso, 1989.
LEVACK, Brian P. A caça às bruxas: na Europa no limiar da Idade Moderna. Tradução Ivo Korytowski. Rio de Janeiro, Campus, 1988.
MUCHEMBLED, Robert. Historia del diablo. Siglos XII – XX. Tradução Federico Villegas. México: FCE, 2002.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F.. O Diabo no Imaginário cristão. São Paulo, Bauru: EDUSC, 2002.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Tradução Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
RUSSEL, Jeffrey. Lúcifer: o diabo na Idade Média. São Paulo: Madras, 2003.
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Sobre o autor do verbete:
Jordana E. Schio é mestre em História pela Universidade Federal de Santa Maria e integrante do Virtù.
E-mail: jordanaschio06@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3602844717231875