Santos

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O santo medieval é àquele cujos fieis rendem culto através de seu corpo, suas relíquias e seu túmulo, é um vínculo entre o mundo espiritual e o mundo material. É um exemplo para os fieis e um apoio para a Igreja, além de servir como patrono de profissões, cidades, comunidades e das pessoas da Idade Média. A santidade veio de uma origem histórica dos mártires, e mesmo que a partir do século XII a Igreja controlasse a santificação, sempre foi a sociedade medieval a verdadeira criadora de santos.
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A palavra “santo” tem origem do latim sanctus—algo consagrado, estabelecido como inviolável, sagrado—particípio passado do verbo sancire—consagrar, sacralizar. Esse verbo é uma derivação do nome do deus romano Sancus—deus da honestidade, fidelidade e dos juramentos, que tornava invioláveis juramentos e promessas, também chamado de Dius Fidius (LIPKA, 2009). O santo é referido na Bíblia como aquele mais próximo de Deus, e a santidade é uma das características do próprio Criador (Lev. 19,2). Essencialmente, o santo é o representante da santidade de Deus em uma sociedade marcada por violência e injustiças, sendo a única entidade capaz de enfrentar as opressões e violações de direito, ameaçando com castigo divino aqueles que detêm o poder político e legal do mundo material. O santo é tipicamente uma pessoa que em vida sofreu perseguições e tormentos por amar a Deus, e na morte foi para o paraíso, encontrando a salvação. De sua presença material no mundo, emana um tipo de aura divina, um vestígio da ligação espiritual estabelecida no próprio santo; há uma energia divina em seus restos mortais, nos objetos que usou e locais que frequentou durante a vida e no local onde morreu. Tal convicção deu origem ao culto das relíquias santas e de locais sagrados.
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O culto ao santo é um tipo de evolução do culto aos mártires do início do cristianismo, uma forma de adoração inerente a esta religião que a destacava das demais: adorar uma pessoa que preferiu ser morta em função de sua fé a revidar contra aqueles que o perseguiram. É uma devoção a uma pessoa que existiu e que, por relatos, viveu uma "vida santa"—cuja definição varia de acordo com a época e região—mas sempre é relacionada a uma perfeição espiritual. Esse culto adquire um caráter de clientela, de patronato entre fiel e santo. Para o homem ou mulher, o santo oferece proteção espiritual, enquanto o fiel se encarrega de prestar devoção e fidelidade ao santo. De forma semelhante, o santo também pode ser adotado como patrono de lugares, profissões ou causas: o protegido enaltece seu culto enquanto o santo patrono lhe garante prestígio e proteção.
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No Oriente cristão, entre os séculos IV e IX, os santos de maior prestígio eram aqueles que levavam uma vida asceta eremítica ou estilita – sendo asceticismo um controle estrito sobre o corpo e a alma, eremitas são aqueles que vivem uma vida renegando os valores do mundo, isolando-se da sociedade; estilitas eram aqueles que tentavam alcançar o mesmo asceticismo vivendo isolados no topo de um pilar. Estes eram os homens de Deus, que renegavam os valores contemporâneos da sociedade em prol de uma vida religiosa e exilada do mundo, de suas tentações e prazeres.
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Por influência de costumes germânicos e do equilíbrio do poder no Ocidente cristão dos séculos IV a IX, as relações entre aristocracia e Igreja se estreitam em uma simbiose: a Igreja e a fé cristã são difundidas e ampliadas com a proteção da aristocracia, ao passo que a manutenção do poder aristocrático é sustentado e legitimado pela Igreja. Principalmente neste período, a santidade é de natureza hierárquica – é uma santidade de “ofício”, conferida a membros da própria Igreja, geralmente bispos e fundadores de igrejas, que costumavam pertencer a dinastias ilustres. Ou seja, é típico que membros da Igreja que fundaram (construíram ou financiaram a construção de) alguma igreja e são de família aristocrata, sejam canonizados. Os relatos e biografias de pessoas santas desse período costumam ser representações de um arquétipo de perfeição moral confirmado por milagres, sendo as falhas e traços humanos omitidos; versões genéricas da figura de Cristo (VAUCHEZ, 1989) que tentam encaixar a vida daquela pessoa em um molde de santidade para conferir-lhe o atributo de santo. Isto é, as biografias desses santos são praticamente iguais: vidas exemplares de santidade e marcadas por milagres, cujas únicas diferenças são nomes, lugares e datas. A Igreja, para fortalecer seus laços com o poder do Estado, aceitava canonizar membros de dinastias aristocratas como santos, o que glorificava a dinastia, dando-lhe um teor divino de maneira mais formal que os antigos costumes germânicos.
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Dos séculos X a XIII, no Ocidente cristão, é dada uma valorização maior ao asceticismo, àqueles que tentam imitar a vida de Cristo. A castidade é sinal de pureza, e a virgindade é dada como a mais elevada característica divina do humano. Os monges eram vistos como tendo a vida mais virtuosa dentre os homens, pois rezavam e eram castos de maneira “profissional”—diariamente estavam em contato com o divino e não lhes era permitido qualquer ato de impureza. Então há um prestígio maior naqueles que vivem de maneira isolada do mundo, tentando imitar o “Cristo nu”, sofrendo pela salvação dos homens—eremitas, reclusos, peregrinos errantes e benfeitores dos pobres. No século XII, devido ao acúmulo de santos que ocorre até então e a falta de rigor para a canonização, a Igreja estipula que apenas o Papa tem o poder de reconhecer os santos. Isso é feito em uma tentativa de diminuir o abuso e negligência de canonizações feitas por bispos, arcebispos e congregações—a canonização feita pela vox populi, a voz do povo, na qual os próprios fieis elegiam um indivíduo como santo.
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Já no final da Idade Média, entre os séculos XIV e XV, acentua-se a pregação do evangelho por profetas canonizados pelo povo, uma santificação de grandes oradores que comoviam multidões. Para eles, a sociedade tem pouca influência dos valores cristãos, assim seus sermões são feitos ao ar livre e atraem multidões, muito mais influenciados pela moral que pelo dogma cristão, para introduzir o Evangelho na vida em sociedade. Além das grandes pregações, estes santos também conciliam famílias rivais e tentam remediar os males que os pobres e aqueles à margem da sociedade sofrem. Esses santos dão origem a hospícios para doentes e estatutos que consolidam a manutenção destes valores ético-cristãos.
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O santo medieval não é uma figura única e estática na História, não é o resultado de um único tipo de “vida santa”, ele é um agregado de valores de “pureza de espírito” da época e da região na qual viveu. Aqueles considerados santos, tanto pela Igreja quanto pelo povo, são canonizados por diversos motivos que dependem da época e do lugar onde estão inseridos. Um santo do século VII pode ser canonizado por viver uma vida reclusa do mundo, orando, se viveu assim o Oriente, ou por ser aquele que trouxe Deus para uma região onde não há igrejas, construindo uma, se o fez no Ocidente cristão.
Desconsiderando exceções, esses são os parâmetros gerais utilizados para canonizar indivíduos dos séculos IV a XV no mundo cristão. Mesmo quando a Igreja Católica assumiu a função exclusiva de canonização para santos no século XII, indivíduos, quando não canonizados pela Instituição, são canonizados por seus fieis, aqueles que o seguem ou acreditam em sua ligação divina.
Referências:
BROWN, Peter. The Cult of Saints. Its Rise and Fall in Latin Christianity. Chicago: Chicago University Press. 1981.
COSTA, Bruno A. Santos e Santidade. O período medieval. Revista de História da Sociedade e da Cultura. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura, v. 12, p. 483–494.
LIPKA, Michael. Roman Gods A Conceptual Approach. Leiden: Koninklijke Brill. 2009.
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presënça, 1989, p. 208–230.
Sobre o autor do verbete:
Wladimir D'Ávila Uszacki é graduando em História pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM e faz parte do Grupo de História Medieval e Renascentista-Virtù.
E-mail: monoolho1@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0949018682117398