Ordália

Expressão procedente do germânico ordael (sentença), as ordálias foram práticas de julgamento utilizadas principalmente no período denominado “Alta Idade Média” (séculos V ao X). De cunho estritamente religioso, as ordálias, também conhecidas como “juízo de Deus”, consistiam em um ritual em que o réu submetia-se a uma provação, onde por meio de participação de elementos da natureza, estimava-se que a intervenção divina iria provar ou não sua inocência.
Apesar de ser comumente remetida ao período medieval, onde de fato estas práticas foram utilizadas mais sistematicamente, a ordália trata-se de uma prática universal, sendo utilizada por diversas sociedades e culturas ao longo da história. Originária de sociedades politeístas, encontram-se registros destas práticas em legislações como o Código de Hamurabi, por exemplo. Estas práticas diferenciam-se de uma cultura para outra, onde sua relevância jurídica, modelo ritualístico e execução dos métodos são influenciados diretamente pela sociedade que as pratica. Mas por que então, o uso das ordálias remete-nos quase sempre a Idade Média?
Para isso, deve-se entender o contexto de formação das sociedades do período medieval. Com a queda do Império Romano do Ocidente e a instalação dos povos germânicos, há a remodelação das sociedades pertencentes ao antigo império, somada à influência legada pelos romanos em todo o continente europeu. Neste cenário de transformação, a realidade europeia altera-se de forma relevante. Necessitado de um regimento, o homem medieval, detentor de uma vida relativamente penosa, vê na religião uma organização no processo de transfiguração em que o mundo ao seu redor encontrava-se. A partir deste contexto é que a religião, na figura do cristianismo, irá se transformar no eixo central da sociedade europeia medieval. Prometendo a salvação, a religião traz um modelo a ser seguido, um regimento que corresponde aos anseios dos indivíduos.
Desta forma, a religião esteve presente em todas as esferas da sociedade medieval, influenciando o ser humano em todas as suas manifestações (arte, musica, arquitetura, entre outros), sendo assim, indissociável de qualquer estudo sobre o período. No âmbito judicial, esta característica não é diferente, onde a presença da Igreja é marcante. Por consequência, o uso das ordálias são encontrados de forma ostensiva, marcando significativamente o período em que foram encontrados registros das práticas.
Os processos judiciais durante a Alta Idade Média correspondiam a um hibridismo do direito germânico, de caráter oral e consuetudinário, com o direito romano, de características mais processuais, escrito. Assim, há a adaptação destas práticas, agora reguladas por normas civis e canônicas. A unificação entre processo penal e civil e procedimentos orais e públicos repletos de simbolismos religiosos, sobretudo através das ordálias, são característicos deste período. O ser humano era visto como falho e limitado, havendo assim a necessidade da interferência divina, ou o juízo de Deus, no campo probatório. Logo, diante de duvidas perante as acusações, as ordálias aparecem como único método resolutivo. Mas como eram realizadas estas práticas?
Durante o medievo, duas ordálias foram mais comumente usadas: a prova do ferro incandescente e o uso dos duelos. Na primeira, o indivíduo acusado deveria pegar em uma barra de ferro aquecida em chamas, onde Deus interveria no julgamento, de forma que se o sujeito fosse inocente, o mesmo não sofreria danos. No uso dos duelos, envoltos de enorme solenidade e ritualística, o indivíduo deveria provar sua inocência vencendo um combate, de forma a mostrar seu valor perante Deus. Com a consolidação definitiva da Igreja e o descrédito de grande parte destas práticas, por serem passíveis de injustiça, o uso da ordália começa a perder espaço a partir do século XII, concomitante com o processo de racionalização por qual passa a Igreja.
Porém, como fora explanado, a pratica da ordália não se limita exclusivamente ao período medieval europeu, fazendo parte da tradição de diferentes culturas. Cada qual com suas características, a ordália fora uma prática comum entre muitas sociedades, desde as anteriores a era comum cristã, como durante ao período Imperial Romano. Ordálias com uso de veneno, juízos com a prática do fogo, testemunho perante relíquias sagradas, juízo de duelos, e o juízo da água, consolidado em diversas sociedades, principalmente no continente europeu durante a Alta idade Média, são alguns dos exemplos de práticas probatórias.
Atribuições jurídicas quanto ao uso dos juízos de Deus também são estritamente correspondentes às culturas que as praticam. Durante o Império Romano, a prática de ordálias fora utilizada por diversas províncias, influenciadas por suas culturas locais, cada qual com sua religião, Deus ou Deuses, porém, com uma característica em comum, estas não possuíam qualquer valor jurídico, limitando-se especificamente ao campo eclesiástico ou moral. Para os povos germânicos, ao contrário dos cidadãos romanos, estas práticas eram tradicionais na maioria das culturas, possuindo completo valor judicial, mesmo que, por vezes, não houvesse relação com o religioso. Todavia, a celebração destas práticas dava término aos litígios, justificando assim, seu uso comum.
Conclui-se desta forma que a aplicação das ordálias tinha como principal objetivo resolver conflitos, independentemente do valor ou prática utilizada por cada sociedade, atribuindo-se na sua maioria de elementos naturais, cuja intervenção divina seria responsável pela constituição da prova para o julgamento dos indivíduos.
Referências:
RESANO, Esteban Moreno. Observaciones acerca del uso de las ordálias durante la Antiguedad Tardía (siglos IV-VII d.C.). Cuadernos de historia del derecho, ISSN 1133-7613, N° 21, 2014. Págs. 167-188.
RICHTER, Bianca Mendes Pereira. A prova através dos juízos de Deus na idade média. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v. 1, n.21, jan/jun. 2015.
VAUCHEZ, A. A espiritualidade na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Sobre o autor do verbete:
Cristian Conterato Rodrigues é graduando em História pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM e faz parte do Grupo de História Medieval e Renascentista-Virtù.
E-mail: c.conterato@hotmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3308372515846115